entre o urbano e a floresta: O Parque Linear do Córrego do Bispo.
Para guardar alguns achados sobre a história iconográfica das águas e dos trabalhadores do século XIX-XX.
Chegar ao núcleo Fazendinha do Parque Linear (em breve Natural) Córrego do Bispo é se plasmar e se apequenar sob a tristeza suntuosa e emblemática, cheia de impactos socioambientais - calculados e imponderáveis -, da construção do Rodoanel Norte, uma cicatriz que atravessa São Paulo, Guarulhos e Arujá, obra da Dersa (Desenvolvimento Rodoviário S.A), empresa estatal paulista.
O Rodoanel marca o deslimite que chegou um planejamento urbano iniciado na década de 40 por Prestes Maia, o “Plano de avenidas” como expansão horizontal da cidade orientada pela lógica do automóvel. A cidade entregue à carrocracia.
Em 2021, visitei pela primeira vez o parque. Caminhando pelo núcleo Santa Inês, avistamos o esqueleto inativo do Rodoanel de cima: naquele dia, após uma chuva, crianças brincavam ao redor de poças d’água, correndo entre as ruínas de um "fim de mundo" cercado pela égide de concreto de uma superexploração agora paralisada. Pensamos alto: “E se o Rodoanel se tornasse um novo Minhocão?”
Esse texto não é conteúdo da minha tese, mas recentemente me debrucei, entre outros acervos, no Arquivo Público do Estado de São Paulo e surpreendentemente encontrei fotos de trabalhadores erguendo um “aqueduto” no atual parque. Essas imagens traduzem a língua da cultura sanitarista da época.
Até o final do século XIX, a exploração das águas da Cantareira se restringia ao Ribeirão Pedra Branca, mas com o avanço dos anos 1890, essa captação foi ampliada para incluir córregos de ambas as alas da serra, como os córregos do Bispo, Itaguaçu e Meninos, cada um contribuindo para a construção de uma rede de abastecimento mais ampla e integrada.
O córrego do Bispo, vizinho das ruínas de uma igreja antiga “do Bispo”— em processo de tombamento — torna-se símbolo não apenas de uma geografia abastecedora, mas também da profunda intervenção estatal com vista no controle sobre o território e sobre os corpos.
Em 1911, com o represamento e o uso dos recursos do vale do Rio Barrocada, o Sistema Cantareira expandiu-se novamente, e foi instituída a Reserva da Serra da Cantareira, planejada para proteger as nascentes e cursos d’água essenciais ao abastecimento de São Paulo. Sob o signo da “engenharia sanitarista”, essa prática de preservação combinava a lógica técnico-científica sobre o meio natural com uma ordem social rígida: manter os mananciais longe dos núcleos urbanos, protegendo a pureza das águas por meio de barreiras físicas e sociais.
Além de impor diretrizes para o uso dos recursos hídricos, o controle estatal estende-se indiretamente aos corpos — aos movimentos, comportamentos e condições de vida de negros, indígenas e migrantes permitidos apenas nas periferias e margens dos córregos. Estes grupos são vistos como ameaças nos espaços centrais e de prestígio da cidade, percepção reforçada pelas propagandas eugenistas que consolidaram o discurso higienista da época.
A mão de obra, principalmente migrante e sem nome, ergueu os alicerces dos direitos de alguns à cidade, enquanto os seus próprios direitos eram deixados à margem. Ainda hoje, essa mesma força de trabalho paga o preço de uma segregação urbana capitalista - uma geografia desigual que cristaliza zonas de violência e exclusão enquanto a pressão do urbano avança sobre a floresta, sobre a vida na floresta, sobre a própria essência da vida.
* * * O Parque Córrego do Bispo guarda uma série de outras histórias, características e usos alterados ao longo do tempo e não mencionados aqui.
Para saber mais sobre a história desde a Fazenda chamada Seminário: História real da Fazendinha Antártica | HISTÓRIA DA FAZENDINHA ANTÁRTICA: Na 2ª Caminhada com História no Parque Linear Córrego do Bispo o Historiador/ Seminarista Rodolfo Rodrigues de Almeida... | By Galeria Jardim Pery Zona Norte | Facebook
Para saber mais sobre os demais parques da borda do PEC (Parque Estadual da Cantareira), a pequena estrada de ferro (Tramway Cantareira) feita para viabilizar a construção do sistema de captação de águas da vertente Sul da Serra da Cantareira, para o transporte de materiais necessários para o represamento e à canalização das águas, sua função atual como Zona de Amortecimento do PEC e outras questões ligadas à expansão urbana: SILVA, Lúcia Sousa e. Proteção ambiental e expansão urbana: A ocupação ao Sul do Parque Estadual da Cantareira. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/90/90131/tde-23112011-141803/publico/LuciaSousaeSilva.pdf. Acesso em 1 de novembro de 2024.
Para saber mais sobre as propagandas eugenistas do início do século XX: SOUZA, Vanderlei Sebastião de, et al. Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional: fontes para a história da eugenia no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, jul.-set. 2009, p. 763-777.
Curiosidades:
- Em 2024 foi declarado utilidade pública (DUP) novas áreas verdes que serão somadas ao parque.
-Neste ano, finalizamos o primeiro plano de gestão do parque - em processo de publicação -, via Projeto Viva o Verde do Programa ONU-Habitat.
-O parque está em fase de obras para a inauguração do “Núcleo Sede”, uma área de uso mais intensivo, com diversos equipamentos lúdicos e de lazer. A seguir as imagens que remete às novas construções e formas dessa área ser apropriada e conservada pelas pessoas:
Crédito das imagens dos dias atuais: Francisco de Oliveira Soares (@francisco__soares), da Divisão de Projetos e Obras da Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente/PMSP.